Desde que eu me conectei ao saneamento básico, sempre escutei que os modelos de concessão somente levavam em consideração o atendimento da população urbana. A principal argumentação era que as soluções para a área rural são muito diferentes e, principalmente, que servir à população que lá vive, destruiria o valor do negócio e inviabilizaria um retorno “de mercado” sobre os investimentos. Fazia sentido, mas isso não quer dizer que não me sentia incomodada.
O incomodo foi aumentando durante a minha jornada, especialmente, depois que mergulhei mais profundamente no setor, através da Cristalina Saneamento. O Novo Marco Legal, de julho de 2020, estava fresco e deixava claro que, em 2033, temos que atingir a universalização dos serviços de saneamento básico, com 99% da população total brasileira com acesso a água potável e 90% com coleta e tratamento de esgotamento sanitário. Ou seja, a população rural está incluída na conta.
Minha inquietação sobre esse assunto foi um dos principais motivadores para que a Cristalina, tendo como bússola o propósito de impulsionar o desenvolvimento humano, mudasse o seu posicionamento estratégico para se tornar uma integradora de parcerias e estruturadora de projetos de impacto para o cuidado da água e do saneamento através de uma rede colaborativa de parceiros.
O foco passou a ser exatamente esse universo invisível e que, pela visão tradicional de investimentos, não pode “entrar na conta” para não destruir valor. Estamos falando de aproximadamente 40 milhões de brasileiros que vivem em áreas rurais, conforme o PNSR de 2019 da FUNASA – Fundação Nacional de Saúde (Plano Nacional de Saneamento Rural). Soma-se a esse universo, as populações das florestas e rios (comunidades tradicionais, ribeirinhas, quilombolas e povos originários), de ocupações irregulares e cidades pequenas (lembrando que 90% das cidades do Brasil têm menos de 50.000 habitantes e 45% menos de 10.000 habitantes).
São muitas pessoas, muitas ruralidades, muitas especificidades, porém, estamos falando de um direito humano básico, um alicerce social, uma alavanca de mudança sistêmica, que precisa urgentemente entrar em algum tipo de conta.
Como passei a minha vida profissional inteira fazendo conta e captando recursos, agora com outra visão, não poderia me conformar com isso. No entanto, ficou claro que primeiramente eu precisava conhecer melhor esse contexto, antes de qualquer construção de modelos quantitativos e estruturas de financiamento, os quais eu já vinha me aprofundando. Eu precisava sentir a realidade que estava querendo impactar. Assim, nos últimos meses, foram muitas viagens e conversas e, hoje eu me sinto preparada para fazer contas, apresentações, metodologias e conexões.
Eu acho importante compartilhar, em poucas palavras, o que venho aprendendo sobre esse invisível e fascinante mundo do saneamento rural, que depois que você o conhece, cresce um sentimento ainda maior de colaborar.
Esse universo é mais próximo do que realmente é a vida. Claro que há muita pobreza, mas por outro lado, há muita simplicidade e autenticidade sobre a visão de mundo. Nós aqui do mundo urbano, complicamos demais e nos afastamos da essência do que somos e da consciência da interdependência entre os seres humanos e a natureza. Lá, prevalece o relacional e não o transacional. O usuário dos serviços passa a ser tratado verdadeiramente como um ser humano.
As pessoas envolvidas com o saneamento rural, certamente são movidas pelo amor. Há amizades profundas nesse grupo e uma energia criadora para buscar soluções inovadoras. Os modelos de gestão e manutenção hoje existentes (no Ceará, Bahia, Piauí e Pernambuco, com destaque para o primeiro) resgatam a cidadania, são democráticos e autossustentáveis. Valorizam o associativismo e a população local.
Há um grande desafio para buscarmos novas fontes de recursos de financiamento para modelos alternativos. O PNSR estima, somente para o saneamento rural, R$300 bilhões de investimentos para os próximos anos.
Conhecer esse mundo me energizou para “fazer muita conta” e continuar me conectando com os parceiros de propósito, além de estimular a colaboração intersetorial, explorar o pensamento sistêmico, me aproximar ainda mais do capital catalítico e construir muitas amizades que levarei para o resto da minha vida.